quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

A VINGANÇA DE EMILY MACLAUREN


- Não, eu já me cansei – disse o delegado furioso, incrédulo, e porque não dizer aterrorizado, diante do depoimento surpreendente de Thomas Mclauren, irmão caçula de Emily Mclauren, jovem brutalmente assassinada, depois de ser estuprada e espancada por Richard Hewitt, Daniel Cooper e David Williams, esses que, até então, se diziam amigos da família Mclauren.

Richard Hewitt telefonou para a jovem Emily Mclauren, convidando-a à sua residência, a fim de ajudá-lo em um trabalho escolar.

A pobre moça foi até a casa de Richard sem saber que estava sendo atraída para uma terrível armadilha. Chegando lá, Richard, juntamente com seus amigos Daniel Cooper e David Williams, violentaram a pobre moça, espancaram-na e mataram-na covardemente, a facadas.

Depois dessa abominável atrocidade, Richard e os amigos enterraram o corpo em um vale próximo ao local do crime.

Passaram-se dias, semanas e meses, mas ninguém sabia do paradeiro de Emily Mclauren. A polícia foi acionada e começou a investigar o caso, procurando as pessoas que estiveram por último com Emily Mclauren.

Uma caravana policial foi à casa de Richard, mas ele, dissimuladamente, e com uma frieza implacável, respondeu todas as perguntas dos policiais, negando qualquer participação no desaparecimento da jovem, embora tenha sido a última pessoa com quem Emily Mclauren estivera antes de desaparecer.

- Não, senhores - disse Richard -, Emily ajudou-me no trabalho e saiu dizendo que iria para casa.

Certo dia, uma intensa multidão encontrava-se no vale. Crianças, que, por ali brincavam, perceberam uma parte fofa na terra e, mal começaram a cavar, não demorou muito a aparecer primeiro um anel de prata com uma mão já em adiantado estado de putrefação.

A polícia foi acionada e, juntamente com a equipe de legistas, recolheu o cadáver para averiguarem se este, realmente, era o corpo da jovem desaparecida. O laudo médico confirmou: sim, aquele era mesmo o corpo de Emily Mclauren, que antes de ser esfaqueada fora seriamente molestada.

O passo seguinte era, agora, encontrar os criminosos responsáveis por tamanha desgraça. Novamente uma caravana policial foi à casa de Richard Hewitt para um interrogatório, já que era ele o principal suspeito do assassinato.

Um tanto inseguro com a pressão dos policiais, Richard confessou ser o responsável pelo assassinato de Emily Mclauren, tendo como cúmplices seus amigos Daniel Cooper e David Williams.

Os três jovens foram presos e ficaram detidos até o dia do julgamento. Mas, devido a falta de provas e à eficácia do advogado de defesa, eles foram absolvidos de toda a culpa, fato que revoltou toda aquela cidade. Como era possível que monstros e facínoras daquela espécie ficassem em liberdade?

Os anos passaram e, ninguém lembrava mais desse crime, inclusive os próprios assassinos. Foi quando telefonemas e bilhetes com terríveis ameaças em nome de Emily Mclauren começaram a tirar o sono dos três jovens. As ameaças eram terríveis e sempre diziam:

- A sua hora está chegando, você não perde por esperar, eu não me esqueci de você e nem de seus amigos.

Os três rapazes, então, reuniram-se em um bar para tratar do assunto.

Apavorado, Richard dizia para os amigos:

- Eu recebo estas ameaças o tempo inteiro. Seja quem for, está tentando nos assustar. É melhor tomarmos muito cuidado. – Que tal irmos até a policia?

- Ficou louco Richard!? – Disse David.

- Vamos até a polícia dizer para o delegado que estamos sendo ameaçados por Emily Mclauren, a garota que matamos há tantos anos atrás? Eles nunca iriam acreditar.

- Eu concordo. – Disse Daniel. - O melhor que temos a fazer é não comentarmos este assunto com ninguém e, principalmente, tomarmos todo o cuidado possível.

Transcorreram-se dias e nenhum dos jovens receberam mais ameaças. Eles já nem se lembravam mais deste fato.

Foi quando o inesperado aconteceu: Primeiro, David sumiu sem deixar rastro, deixando Richard e Daniel apavorados.

Em seguida, foi a vez de Daniel, que também sumiu como se fosse tragado pela terra. E por fim, foi a vez de Richard.

A polícia novamente foi acionada, mas, desta vez, o caso ainda era pior que o de Emily Mclauren, porque o autor dos desaparecimentos não deixou pistas. Depois de muitas investigações e sacrifícios, a polícia encontrou os despojos dos rapazes no porão da casa de Emily Mclauren. E o pior é que todas as provas e indícios do crime caíam sobre o irmão caçula de Emily Mclauren - Thomas Mclauren - que foi levado para a delegacia e agora prestava depoimento.

-Senhor Thomas Mclauren, o senhor é o principal suspeito do assassinato desses três jovens. Todos os indícios apontam para o senhor. A quem o senhor está tentando enganar com esta história? O senhor acha mesmo que eu vou acreditar no absurdo que o espírito de sua irmã o obrigou a matar esses jovens, clamando por vingança? . – Indagou o delegado.

- Eu vou repetir a história outra vez doutor. – Disse Thomas Mclauren. Primeiro, tudo o que fiz foi por medo e obrigado pelo espírito de minha irmã Emily Mclauren. Tudo começou três meses após seu assassinato. Passei a ter pesadelos com minha irmã. implorando por vingança contra Richard, Daniel e David. A princípio eu não dei tanta importância, mas os pesadelos começaram a ser mais terríveis e constantes. Certa noite, ao acordar de um pesadelo apavorante... eu não pude acreditar, no entanto, não estava sonhando! Era real, estava ali bem à minha frente o espírito de minha irmã, clamando:

‘ - Vingança... vingança...vingança!’

‘Tomei coragem e perguntei por que ela estava fazendo isso comigo. E ela respondeu:

‘- Thomas, meu irmão, você precisa se vingar daqueles assassinos para defender minha honra e fazer justiça; caso você não o faça, eu não sairei jamais de seus pesadelos.’

‘Foi então que decidi colocar esse plano macabro em ação. Comecei a dar telefonemas e escrever bilhetes ameaçando os rapazes em nome de minha saudosa irmã. Era já madrugada de sábado para domingo quando seqüestrei David. Não tive muita dificuldade, pois ele voltava de uma boate muito embriagado e não ofereceu a mínima resistência. Outro fato que facilitou as coisas foi me sentir possuído por estranha força. Sei lá, sentia-me como se alma saísse do corpo para dar espaço a outra. O cativeiro das vítimas era o porão de nossa casa, onde agrilhoei David, completamente nu e amordaçado, em dois ganchos fixados na parede até passar o efeito do álcool. Grande parte da embriaguez de David já havia passado quando senti novamente a estranha força apoderar-se do meu corpo. Eu tentava em vão lutar contra ela, mas era impossível. Peguei o estilete e arranquei friamente os olhos de David, que, mal podendo se mexer, contorcia-se e gritava acorrentado na parede. Não satisfeito com tamanha maldade, peguei a tesoura de jardineiro e cortei bem devagarinho seus dois testículos. Um gemido terrível e abafado ecoou naquele lugar. Deixei-o nesse estado durante três dias e, quando voltei, pude ver que a vítima agonizava em um estado de semiconsciência. Foi quando resolvi acabar com a agonia da vítima: peguei o facão e passei sutilmente na garganta de David, que ainda tentou emitir algum som, antes de morrer.

‘- Pronto! Um já foi. Só faltam dois: o Daniel e o Richard.

‘Para atrair esses outros dois à vingança de minha irmã Emily, bastou dizer, a cada um, que o outro se encontrava escondido em minha casa e precisava falar-lhe, porque assim estariam se protegendo daquela estranha ameaça. Telefonei para Daniel, dizendo que David queria falar com ele em minha casa, mas que não avisasse Richard, para não atrapalhar os planos. Toca a campainha e abro a porta, era Daniel, que queria ver David. Então eu disse:

‘- Por aqui, ele está esperando por você escondido no porão.

‘Sem desconfiar de nada, o ingênuo Daniel seguiu-me até o porão. Abri a porta e disse:

‘ - Lá embaixo!

‘Mal David deu as costas, outra vez a estranha força tomara conta de meu ser e empurrei com toda a força o pobre Daniel escada abaixo, que caiu inconsciente. Ao acordar, Daniel encontrava-se amordaçado e algemado com as mãos pra trás em uma cadeira. Mesmo tonto pela queda, viu o cadáver já em adiantado estado de decomposição do amigo David. Eu podia ver o terror nos olhos de Daniel, mas tinha que executar a vingança de Emily. Foi quando novamente senti a força estranha tomar conta de meu ser. Tirei os sapatos de Daniel e, com um torquês, comecei lentamente a arrancar as unhas de seus pés. Ele começou a gemer e todos os músculos de seu corpo vibravam. Foi quando me veio em mente fazer uma forma diferente de escalpo: em vez de só arrancar o couro cabeludo, arrancaria da parte do pescoço para cima. Apanhei o escalpelo e fiz um corte superficial em torno da pele do pescoço, arrancando-a bruscamente, e deixando Daniel em carne viva, mas somente do pescoço para cima. Com a intenção de vê-lo sofrer um pouco mais antes de matá-lo, joguei sal grosso nas partes que eu havia lesado. Contorceu-se todo, até ficar imóvel, o infeliz. Finalmente, eu estava satisfeito. Acho que já o fizera-o sofrer demais. Então, peguei um punhal e finquei-o em seu coração. Percebi um último suspiro. Eu já tinha acabado com dois dos assassinos da minha irmã, só faltava pegar o Richard. Ah! Como este me deu trabalho, resistiu e lutou até o último momento. Fui pessoalmente até a casa de Richard dizer que David e Daniel encontravam-se em minha residência e precisavam falar com ele, porque tinham descoberto quem fazia as ameaças em nome da minha irmã. Usei a mesma tática que usei com os outros, conduzi-o até a entrada do porão e abri a porta.

‘- Eles estão lá embaixo. – Disse eu.’

‘Senti novamente a estranha força de que já falei, e, quando Richard percebeu que eu iria empurrá-lo, segurou-me pelo braço e ambos rolamos escada abaixo. Trocamos vários socos e pontapés, mas Richard estava em desvantagem, afinal, ele não conhecia o ambiente, enquanto eu conhecia cada canto daquele porão. Foi um cruzado de direita certeiro em meu rosto que quase me levou a nocaute. Apavorado, Richard ainda chegou a ver os corpos dos amigos torturados e mortos por mim. Completamente desorientado e machucado em razão da luta, ele tentou escapar, subindo pela escada do porão; mas teve a infelicidade de torcer o tornozelo e rolar escada abaixo outra vez. Rapidamente, peguei o machado e, com um golpe certeiro, decapitei seu braço direito. Banhado de sangue e berrando alto, ele ainda ofereceu resistência. Desferi outra machadada que agora decepou o antebraço esquerdo. Por alguns instantes, ele ficou ali imóvel, mergulhado em sangue. Olhei-o fixamente e disse:

‘- Esta é a vingança de minha irmã, Richard. - Esta é a vingança de Emily Mclauren.’

‘Com um olhar hostil, a voz trêmula e sussurrante, ele disse:

‘- Pro inferno você e a vagabunda da sua irmã.’

‘O ódio tomou conta do meu ser, a força estranha, que me movia a fazer aquelas barbaridades, manifestava-se agora de forma mais intensa. Peguei o martelo e desferi-lhe um golpe na boca que lhe arrebentou toda a arcada dentária. Não satisfeito, tirei do bolso uma navalha e cortei-lhe as duas orelhas e, em seguida, o nariz.

‘ - Sangra... sangra, maldito!’

E por fim, para dar cabo à vingança de minha irmã, apanhei o machado e dei um golpe fatal na cabeça daquela figura semimorta. Terminada minha tarefa, sentei no degrau da escada e fiquei em silêncio. Foi quando ouvi o chamado de minha irmã:

‘- Thomas! Thomas!’

‘Apareceu feliz e orgulhosa à minha frente e disse:

‘ - Eu agora posso ir em paz... Obrigada meu, irmão. Adeus!

‘E isso é tudo, delegado’.

- É uma história em tanto senhor Thomas Mclauren; contudo, muito difícil de acreditar. – Disse o delegado. Guardas! Guardas! Podem levá-lo para a cela.

A CASA DO ENFORCADO


Quando finalmente conseguiram vencer a resistência da madeira da janela – que fora a única abertura a vergar ao ímpeto de um aríete improvisado –, os homens retrocederam de surpresa, nojo e horror. De uma densa névoa – uma bruma mefítica e pestilenta – que emanava dos intestinos da casa velha, veio a surpresa, capaz de paralisar os mais impávidos e amolecer os mais empedernidos. Polca – o velho e bom Polca, que até então se contentava em relamber o que restara do sangue nas patas hirsutas, condoídas e tontas de tanto escavar a rude porta de madeira ancestral – saltou pela abertura de luz que os homens abriram, e quase cegou ao contato do Sol, que agora desmaiava. E, com as fuças enodoadas, onde os dentes arreganhados ainda retinham em suas frestas negros nacos de carne apodrecida, emitiu um ganido ensandecido, para depois galgar o horizonte constrito, encharcado de manguezal, sobre o qual escorria e ondulava o sangue silencioso do anoitecer.

No interior da casa, os homens, embrutecidos pelo miasma, mantiveram os lenços apertados contra os narizes. Dois deles erguiam candeias olorosas de querosene, porque o antro era mais escuro que a morte e mais pestilento que um túmulo. Mas contam os antigos que foi um deles, o que espraiava as mãos nuas, espalmadas contra a escuridão de pedra, que tocou o cadáver do ancião. Quando o lume chegou, viram os homens que a velha figura oscilava no vazio, colhida em pleno ar pelo próprio cinto – o puído cinto de couro que contivera um magro ventre por tantos e tantos anos. E bailava serenamente aquele corpo informe, como que tangido pela brisa suave e asséptica, quase poética, do anoitecer invernoso do Recife.

A antiga casa, onde se enforcara o ancião, e que hoje não existe mais, era uma das mais sólidas construções de Campo Grande. Construída sobre alguns alicerces devastados aos invasores, a vivenda ressurgira seguindo os passos dos sóbrios e elegantes engenheiros flamengos. A casa era, assim, de pedra. Pedra absurdamente equilibrada sobre um ângulo improvável de outra pedra, como ainda se vê nos antigos trapiches abandonados do velho Recife. Compunha-se de um único pavimento, comprido e estreito, tenaz em evaporar a luz aos primeiros e ousados passos. E as suas paredes, rebocadas pela argamassa úmida, carcomida de mofo e estrias, deixavam entrever, no sulco das profundas cicatrizes, que desciam céleres dos caibros repletos de fungos, a face ossuda das pedra revelhas, que reagiam e fulguravam à luz das candeias, como crânios a desafiarem a imortalidade da própria morte.

A musculatura das paredes laterais erigia-se incrivelmente forte. Sobre ela, apoiavam-se as tesouras de madeira de lei.

E era a trave da última das tesouras – a mais mofada e encardida – que sustentava o peso morto, e dele fazia agora um pingente assustadoramente desumano e lúgubre. Parecia incrível, à luz mortiça dos lampiões, constatar o cuidado que assediara o homem velho ao afundar, na língua puída, que era a ponta de seu cinturão, os pregos vigorosos e brilhantes. Possível ainda seria ouvir o eco seco da madeira reverberando por cada um dos ossos que compunham o esqueleto da casa anciã, como um pulsar de um coração ainda mais nefasto e carcomido pelo bolor dos anos. E escutar – enfim – o esgar da madeira – que, durante séculos, não emitira um rangido sequer – lamentar-se, com um angustiante protesto, ao mergulho resoluto que o homem descreveu no mais negro dos mais negros vazios.

Quem o via ali, tão desolado em sua mortal solidão, não podia adivinhar a calma com que o homem, roto de alma, ajustou, num gesto altivo e solene, o cinto ensebado ao pescoço exangue. E nem cogitou de que restaria apenas o espetáculo monótono de um homem bailando suavemente o seu vazio de morte, tão melancólico e tão sombrio que só a bênção do Deus da inconsciência eterna poderia proporcionar e compreender.

E Polca, sozinho naquela casa tão obscura, não cansava de lamentar, com o seu uivo animal, a ausência de um dono que, enigmaticamente, se fazia tão presente. Se ali estava, por que não se mexia? Por que não sabia que estávamos ambos famintos? Por que somente se balouçava na trave, para lá e para cá, quando tocado pelas patas cansadas, e não cuidava da água e dos alimentos? Não lhe trouxera alguns ratos para comer? Não implorara que repartisse comigo as ratazanas?

O tempo girou os seus gonzos cansados, e finalmente Polca percebeu que aquele ali, dependurado num cinto velho, não era mais o seu dono. O cheiro mudara. A atitude mudara. Nenhum afago. Nenhuma palavra. Não mais havia a ordem de entrar e de sair. Aquele não era mais o seu dono. De alguma forma, algo que jamais imaginara, e que a sua mente canina não entendia, usurpara o bom homem que o alimentava e que cuidava carinhosamente de suas feridas, quando os ratos motejavam de suas orelhas.

Então polca, corroído pela fome, começou por mastigar as sandálias que pairavam opressivas acima de sua cabeça. Ganiu, deu várias voltas em torno do próprio rabo. Latiu. E passou a lamber os pés daquilo que descia dos céus, e que tomara o lugar de seu dono.

Depois mordeu.

Roeu e mordeu novamente.

Excitado, lambeu o sangue revelho com um furor que ele próprio desconhecia.

Algum tempo depois – um tempo que somente a mente canina pode medir e eternizar – o cão sentiu uma secura na língua, que grassou à insanidade. Mastigando e dilacerando, uivando e roendo, assim ficou o animal, até saber que não era fome o que sentia.

Era sede.

Era uma sede que se tornava mais pungente a cada naco de carne podre que extraía das pernas descarnadas do ancião. Uma sede monstruosa, que quase tocava o infinito. Mas não parou em sua agitação canina, rosnando e eriçando os pêlos nervosos. Mordeu, ganiu, gemeu e dilacerou até não mais poder roer osso algum. Quando, finalmente, foi avisado de que os ossos e as carnes sulfurosas não mais estavam ao seu alcance, apesar de todo ímpeto e de toda fúria com as quais se lançava contra a beira do cadáver, mergulhou os focinhos entre as patas traseiras, mastigando e remoendo o próprio rabo. Enrodilhou-se, pois, como uma serpente iracunda. Tremeu e espumou num canto escuro, qual um endemoninhado. Tremeu e gemeu. Ganiu e dormiu.

Outra eternidade passou-se até que viesse um despertar com a súbita deliberação de fugir e abandonar para sempre o cadáver que amputrara.

Os ossos do ancião – homem pobre, valoroso e solitário – insinuavam-se pela abertura das calças mutiladas. E quando os homens viram as pontas dos fêmures carcomidos, corroídos pela fúria alucinada do pobre animal., caíram numa espécie de torpor e de horror indizíveis. O luzir dos ossos brancos, impacientemente triturados por dentes sôfregos, ainda mais sinistra tornava aquela oscilação pendular, aquele bailado inerme de enforcado. Assim, encetaram uma busca completa na região, para matar o animal, porque induzidos a um horror bem mais profundo que o necessário. Abateram o animal a pauladas, sem compaixão alguma, e puseram-no a afogar-se no charco lindeiro de Santo Amaro. Somente depois que se riram e jactaram da própria crueldade, é que encontraram, no colete do enforcado, um pequeno bilhete, metido na tampa de um relógio de algibeira, a embrulhar os retalhos de um retrato feminino. O bilhete, escrito pela tinta púrpura da solidão e do desamparo, dizia apenas:

“Cuidem bem do meu cão, pois é tudo que tenho e o melhor do que jamais tive”.

PASSADO SANGRENTO

“Os sonhos, que têm muito para nos ensinar acerca da natureza da alma, retratam por vezes as muitas formas que temos de estar ligados ao passado. (...) Na vida exterior, podemos deixar uma pessoa ou um lugar mas, na memória e nos sonhos, a alma agarra-se a essas ligações passadas ”

Thomas Moore – Em busca da Alma Gémea.

I – O Duelo

Acácio Trigueiro temia em deixar de respirar para sempre. Estava já a ficar sem visão e as suas pernas badalavam, enquanto aquela garra lhe comprimia a vulnerável veia jugular, não exibindo vontade de afrouxar.

Acácio não tinha hipóteses de altercar. Conhecia o opositor. Já o tinha defrontado há cento e noventa anos atrás. Derrotara-o, é certo, mas agora ele estava mais forte, mais eficaz e regressara com uma voraz sede de vingança.

- Onde está ele? – Berrou o ser hediondo.

Em sufoco, Acácio tentou responder, mas não conseguia sequer respirar. Sentiu, por breves momentos um alívio na sua garganta, mas ainda assim, continuava sufocado.

- Diz-me!... Onde está? – Insistiu a “coisa”.

-Não sei, imbecil! - Respondeu ele com dificuldade.

- Então morre, “Albuquerque”! – Roncou, arrojando a cabeça do velho Acácio contra uma lápide, deixando-o imobilizado no chão, a esvair-se em sangue. A criatura distanciou-se vagarosamente do local. Galgou para o seu imponente cavalo e partiu a galope, afastando-se rapidamente, largando um rasto de poeira que se confundiu com o nevoeiro denso e húmido que se abatera na noite. Era um ser sinistro. Estava mais assustador do que nunca. O velho Acácio não queria acreditar no que lhe estava a acontecer. Ainda tombado no chão, sentiu-se a desfalecer. Reviu a sua vida a trespassar-lhe a memória. Recordou-se dos seus filhos, ainda crianças; lembrou-se do seu casamento. Fixou o olhar na lápide da sua defunta e amada Filomena. Depois reviveu a sua juventude a bordo do submarino Albacora (1), onde navegara inúmeras vezes, e combatera durante a guerra Colonial, como 1º sargento.

«Como vou fazer para encontrá-lo, antes da coisa?», pensou.

Teria de ser mais inteligente. Deixaria que a sua alma o guiasse e conduzisse até aquele inocente que vivia o seu dia-a-dia sem imaginar o “mal” que agora o procurava.

Enquanto pensava nisto, Acácio reuniu forças para se levantar. Segurou-se à lápide onde jazia a sua eterna amada e pôs-se de pé. Sangrava abundantemente do flanco esquerdo da cabeça. Olhou em redor e examinou o ambiente sinistro que o cemitério emanava. As cores do crepúsculo tinham sido rendidas por uma lua tenebrosa, e a noite parecia mais escura do que nunca. Escutou o ribombar de um trovão e aguardou que o refrigério da chuva lhe acariciasse o rosto velho.

Cambaleante, com a sua longa gabardina despregada ao vento, Acácio parecia um “zombie” a escapar de um jazigo. De facto, ele era isso mesmo: um ser moribundo, entre a estreita linha que separa a vida da morte. - Vou encontrá-lo, antes “dele”! – Jurou em voz alta, enquanto procurava um portão para abandonar aquele local medonho.

II -Nunca adormeças profundamente

A manhã despertara pálida e chuvosa. O ambiente na escola secundária das “Cavaquinhas” estava agitado. Os alunos faziam greve, reivindicando melhores condições nas salas de aulas, onde chovia sempre durante o Inverno. Seguidamente, os ânimos exaltaram-se, e a policia começou a “aconchegar” alguns alunos mais atiçados, o que fez com que Ricardo Gonçalves abandonasse o local, e voltasse para casa a fim de evitar confusões.

As aulas tinham começado há pouco mais de um mês, mas Ricardo já estava enfadado da escola, dos professores e até da sua própria turma. Órfão de pais, vivia no Seixal com os seus Tios, José e Magda. Sobrevivera a um violento acidente de viação quando tinha nove meses. Não se lembrava de nada, mas sabia que tinha sido dessa forma trágica que os seus pais tinham falecido.

Ricardo seguiu a pé até casa, pois esta distava apenas um quilómetro da escola. Caminhou, aparentando ser um rapaz alegre, mas na realidade, não era. Por vezes, ficava tenso e sombrio. Especialmente, quando era atormentado por pesadelos. Não eram pesadelos vulgares. Acordava sempre muito confuso, sem saber o que tinha acabado de sonhar. Depois permanecia alguns minutos a tentar diferençar o que era sonho e o que era realidade. Durante o dia, esforçava-se por não pensar nos pesadelos que o atormentava de noite.

Olhou em várias direcções antes de atravessar a estrada, mas logo que lhe pôs o pé, foi surpreendido por um ronco de um carro acelerado, que surgiu logo a seguir à curva. Para surpresa dele, a viatura deteve-se mesmo à sua frente.

Ricardo olhou de soslaio, e a sua mente criativa fê-lo imaginar se aquele individuo não seria um agente do “SIS” (2), que andava a seguir os manifestantes para os identificarem, e seguidamente, prenderem. O jovem estudante sentiu-se pouco à vontade e sem reacção, mas ainda teve tempo de observar a viatura que o seguira. Era um “Mercedes” preto. Fixou também o rosto do condutor. Tinha uma fronte velha, um rosto barbudo e usava um boné preto. O estranho fumegou o seu cachimbo de “roseira brava”e fixou-o com um ar ameaçador. Depois arrancou com o carro numa velocidade moderada, abandonando a rua subtilmente. Confuso, sentou-se no passeio; respirou profundamente e visualizou mentalmente, o rosto do homem, mas pareceu-lhe estranhamente inofensivo. Decidiu ignorar o incidente e voltar para casa.

Quando chegou à residência, Ricardo fitou a sua tia Magda no exterior do quintal a borrifar as sebes ornamentadas com cameleira.

- Olá Tia. Estou um pouco cansado. Vou pró meu quarto. – Disse vagamente.

Arremessou a sua mochila para o canto e caiu estatelado na cama. Olhou para o tecto, e ainda matutou durante algumas horas no que lhe acontecera, mas sentia-se tão extenuado que acabou por adormecer. A acalmia da noite fora interrompida pelo latir de um cão. Não era um ladrar normal, algo se passava lá fora. Levantou-se apavorado, ficando na dúvida, se devia descer ou ficar protegido e resguardado no seu quarto. Algo invadira a casa. Não era alguém, era “algo”. Susteve a respiração durante alguns segundos para poder escutar melhor o que estava a acontecer. Pareceu-lhe ouvir um arrastar pesado. Aproximava-se vagarosamente do seu quarto e vinha matá-lo. Decidiu fugir. Era a única solução que lhe restava. Abriu a janela, galgou o parapeito e saltou para a cobertura onde balouçou, tentando obter algum equilíbrio. Tomado pelo terror, tomou balanço e saltou para o chão. Era uma queda de três metros, mas se aquela “coisa” o apanhasse, por certo seria bem pior.

Caiu no chão duro e sentiu o tornozelo a estalar. Conseguiu levantar-se e afastou-se, penetrando no pinhal que se estendia na retaguarda da sua casa.

Ricardo correu até não poder mais. Estava ofegante e exausto, pois já não tinha fôlego. Decidiu parar. Ouviu Dingo, (o seu cão e amigo) a ladrar. O latido fora interrompido por um ganido agudo e doloroso. Aquela coisa tinha esquartejado o pobre Dingo.

Fez-se um silêncio de morte, e apenas o rumorejar do vento arrefecido entre as vinhas espessas, mantinha desperto o silêncio da noite. Nem os excêntricos espantalhos que guardavam a plantação se moviam. Pareciam ter horror do que se aproximava. Já não restava fôlego nem forças ao pequeno para se mover. O seu tornozelo também não suportava mais. Começou a arrastar-se, fazendo impulsão com os braços, puxando o resto do corpo para a frente. Os caniçais começaram a mover-se. Algo caminhava na sua direcção. Acolheu uns pingos húmidos na testa. «Começou a chover» imaginou; Olhou para cima e gelou-lhe o sangue ao avistar a criatura monstruosa que o contemplava, encharcada em algas e empastada com musgos lamacentos. O ser agarrou-o pelo pescoço com violência, e ergueu-o até ao nível da sua face desfigurada. Quando Ricardo olhou de frente para o opositor, soltou um grito gutural de terror.

- Ricardo, Ricardo! – Era a tia Magda quem o abanava bruscamente – Estavas a ter um pesadelo, meu querido. Tem calma!

-Tia Magda!... Que pesadelo horrível! – Balbuciou ele, enquanto despertava confuso e amedrontado.

Passou a mão pelo cabelo e pela testa; estava alagado em suor; tentou recordar-se do pesadelo e do rosto daquela coisa, mas rapidamente a imagem fugira-lhe do cérebro.

III – A verdade oculta no tempo

Ricardo não era adepto de desportos radicais, mas naquela sexta-feira decidira ir até ao “parque da siderurgia” decidido a assistir às acrobacias que os praticantes destes desportos executam durante as suas “performances”. Além disso, estaria lá a Cátia Faleiro com a sua «Bike» voadora. Para ele, isso era sinónimo de espectáculo. Cátia era uma garota de catorze anos, que frequentava o 9º ano, mas por quem ele tinha uma grande fixação. Não só por ser uma adolescente bonita, mas por tudo o que ela conseguia fazer em cima daquela «Bike». Era uma arrebatadora de prémios e de corações também.

O jovem sentou-se em cima do tronco de um carvalho e ficou a admirar a miúda a voar na sua «Bike». Inesperadamente, apercebeu-se que alguém o observava. Era aquele homem que o perseguira naquele dia, à saída da escola. Reconheceu-o pelo odor do tabaco que soltara do seu cachimbo. Observou o homem e percebeu que este tinha começado a caminhar na sua direcção.

Hesitou entre fugir devagar ou a correr. Mas a sua coragem levou-o a ficar ali quieto, à espera do homem misterioso.

- Olá. Não tenhas medo de mim, Ricardo!

- Como é que sabe o meu nome? – Perguntou com o rosto pleno de admiração.

- Eu sei sobre tudo sobre ti, rapaz – exclamou o velho, fixando-o.

- Desculpe, mas isso não é possível.

- É possível, sim. Sabes porquê?

- Não...

- Porque tu e eu temos os mesmos sonhos. Os mesmos pesadelos - Exclamou o velho.

- Eu não tenho pesadelos nenhuns. – Respondeu Ricardo apressadamente.

- Tens! Eu sei que tens. Sonhas com um casa no campo, com o teu cãozinho, Dingo. E depois...com o monstro!

- Como é que sabe tudo isso?

-Porque já vivemos outras vidas, tu e eu. E há muito, muito tempo atrás, nós dois enfrentámos o monstro.

- Que monstro? – Indagou Ricardo, perplexo.

- O conde Darkmoon!

Aquele nome tinha-lhe soado estranhamente familiar. Como era possível?

- Alguém ou algo o ressuscitou – Continuou o velho Acácio – e agora ele anda desesperadamente à tua procura, Ricardo.

- E agora? O que posso eu fazer? – Balbuciou.

- Tens de confiar em mim e vir comigo. Vamos fazer uma viagem no espaço e no tempo.

Ricardo abandonou o parque da siderurgia com o velho Acácio trigueiro. Depois enfiou-se dentro do Mercedes com ele e seguiram viagem em direcção ao Minho.

IV – A casa de Sezim

Do meio da penumbra, como que disfarçada nas sombras, surgia a casa de Sezim. Só o vento se fazia ouvir pelo meio das árvores arrogantes que flanqueavam aquela imensa construção. A casa preservava as suas linhas harmoniosas, bem como toda a sua nobre monumentalidade. Acácio parou o Mercedes em frente ao edifício e observou a perplexidade no olhar de Ricardo ao vislumbrar a extravagante construção que se erguia perante ele.

Estava decrépita, pois já não era habitada há cerca de setenta e cinco anos. A casa de Sezim situava-se em Guimarães, primeira capital de Portugal, e fora doada aos primeiros proprietários por D. João Freitas, companheiros de Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal.

Fora uma casa senhorial de raiz agrícola. Uma excepcional propriedade erguida no século XIV, onde viveram grandes senhores feudais, proprietários de grandes cultivos e produção de vinho verde.

Agora era apenas um “museu” para ratos e aranhas.

Não existiam quaisquer vestígios urbanos num raio de alguns quilómetros. Parecia que o tempo tinha parado nos meados do Sec. XIX e assim tinha permanecido.

Depois de o seu ultimo proprietário (um conde Inglês) ter misteriosamente desaparecido em 1809, a Casa de Sezim nunca mais fora habitada por mais ninguém, nascendo assim o rumor da «velha casa assombrada.»

Ainda houve alguns viticultores que tentaram relançar a produção vinícola na região, mas com o aparecimento da Filoxera (*), as empresas acabaram por falir.

Em 1930, o estado instaurou uma acção executiva e apropriou-se da propriedade, deixando-a ao abandono.

Não foi preciso forçar o portão principal para penetrarem, pois apenas restavam algumas tábuas pregadas, que rangiam estridentemente quando arrastavam pelo chão. Acácio ia na frente e iluminava o corredor com uma lanterna a pilhas que retirara do seu bolso.

Já no interior da casa, ambos pararam a contemplar a sua decrépita elegância: As paredes do salão nobre ainda se revestiam com um papel pintado de rara beleza.

O seu tecto muito elevado, conferia uma estatura descomunal ao hall de entrada. Do cimo do tecto descaía uma enorme e aterradora teia de aranha, que pendia desleixadamente. Parecia estar ali para confirmar o abandono humano de décadas e décadas. Havia poeira no ar que se soltava do chão, após cada passada de cada um deles. Da cave, soltava-se um escarpelar manhoso das ratazanas a progredirem pelo solo. «É mesmo uma casa assombrada» pensaram. Acácio tomou a iniciativa e começou a subir a escada que o levava ao piso superior. Achou que devia verificar os andares de cima em primeiro lugar, pois se alguém os esperasse para atacar, seria ali que se colocava, pois tirava maior vantagem posicional. Aprendera esta táctica na guerra.

-Não há ninguém, aqui! – Exclamou após ter revistado os quartos do andar de cima.

-Parece-me que aqui em baixo, também não! – Retorquiu Ricardo com uma entoação de alívio.

Um estrondear vigoroso de um trovão suspendera o silêncio sepulcral que se sentia na casa e a chuva começou a cair vigorosamente. Lá fora, o vento bramia zangado, forçando os carvalhos a balancear como se quisessem fugir do solo. Toda a casa rangia como se fosse um barco à deriva no mar alto. Caiu a noite e a casa ficou mergulhada numa acentuada penumbra.

- Temos de iluminar este lugar! – Advertiu Acácio.

Ricardo observou-o, e no momento em que o velho passou em frente de um espelho fixo na parede, ele notou que a imagem reflectida não fora a de Acácio Trigueiro, mas a do velho Albuquerque, com quem ele sonhava por vezes. Sentiu um formigueiro subir-lhe pela espinha.

- Sim, vou arranjar alguma madeira seca para fazer uma fogueira. – Sugeriu Ricardo.

- Nós já estivemos aqui! – Argumentou o velho Acácio, colocando as mãos sobre o lume para as aquecer

- Como é que é possível, já termos estado aqui? – Inquiriu, o miúdo com o seu ar curioso.

-Eu explico-te. – Replicou ele calmamente, retirando o cachimbo do seu bolso.

– Trabalhámos nesta casa em 1808. Eu era o teu avô e laborava nas vinhas, lá mais atrás. O Conde Darkmoon era o dono de toda a região.

- Como sabe tudo isso? – Inquiriu Ricardo com o seu rosto sagaz.

- Fiz terapia de regressão... há trinta e oito anos atrás! Ainda durante a Guerra do ultramar, eu estava na marinha e fui destacado para embarcar no submarino Albacora. Mas em Janeiro de 1962, o navio teve uma grave avaria e teve de atracar de urgência em Cabo Verde, permanecendo num estaleiro durante uma semana. Enquanto o reparavam, decidi fazer algumas expedições pela selva, onde acidentalmente, conheci uma jovem de nome Hadija Aljani, feiticeira de uma tribo chamada “Sarparra” (cortadores de cabeças).

Ela disse-me que eu era perseguido por um vulto das trevas, então insistiu em me hipnotizar para me ajudar a perceber o meu passado. Só assim conseguiria livrar-me do mal que me perseguia há séculos. O que vi diante dos meus olhos foi um horror terrível e inexplicável…

V - O Conde Darkmoon

António Albuquerque era um modesto cultivador de uvas na região Minho. Herdara dos seus pais um terreno com alguns hectares para o cultivo de das suas vinhas. Albuquerque era viúvo de Carolina, que falecera ao dar à luz, a pequena Maria. Albuquerque vivia com o seu neto, o pequeno Manuel. Este, ainda jovem, já se mostrara um excelente lavrador, embora passasse a maior parte do tempo a brincar às escondidas com o seu cão, Dingo.

O ano de 1808 tinha principiado, e segundo os agricultores mais experientes, aquele iria ser um ano intrincado para os produtores de vinho. Por um lado, as intempéries dificultariam o cultivo; por outro lado, as invasões francesas tinham deixado os produtores com medo de investir. Quando a crise se agravou, os agricultores que se dedicavam em exclusivo ao cultivo das vinhas, foram obrigados a transformar os seus negócios, em domínios feudais, para evitar a ruína e a falência

Foi neste quadro que António Albuquerque conheceu o Conde Darkmoon – Um poderoso senhor Feudal inglês.

O conde era um jovem distinto e excêntrico, proveniente da alta nobreza Inglesa, encarregando-se de dinamizar a actividade mercantil da época: importação de diamantes, provenientes de África, exportação de matéria-prima para a Europa, entre outras, menos transparentes. O poderoso Conde apropriou-se dos terrenos dos pequenos e médios proprietários, transformando a região norte do país numa grande propriedade feudal. Os proprietários não tinham alternativa: Ou resistiam ao poder do conde, (o que lhes custava posteriormente, uma pilhagem por parte dos seus bárbaros capitães donatários) ou entregavam as terras a Darkmoon, que lhes garantia trabalho e protecção, através da cobrança do respectivo dízimo. António Albuquerque optou pela segunda hipótese.

No dia 2 de Março de 1805, veio uma notícia que abalou toda a região. Um acontecimento macabro e sangrento derrubara a família dos Condes: a filha do Conde Darkmoon, a pequena Cinthya, de sete anos, fora brutalmente violada e assassinada, numa zona recôndita da Casa onde ele habitava – A casa de Sezim! O assassino andava a monte. Dois meses depois, uma outra criança, desta vez um rapaz de doze anos, filho de um dos agricultores, fora igualmente violado e assassinado. O seu corpo fora encontrado nas margens do rio Tâmega, alguns dias depois. Inexplicavelmente, os crimes macabros, não tinham fim. Em poucos meses, sete crianças tinham sido monstruosamente violadas e barbaramente espancadas até à morte. Não havia explicação para o que estava a acontecer. O assassino tardava em ser capturado.

VI - O Reino do terror Na véspera de Natal de 1808, o Conde Darkmoon dera um grande festim na sua luxuosa casa. Havia um majestoso baile de gala, muita animação, presentes para todos e um deleitante jantar. Uma festa que servia apenas para a grande – Nobreza, ostentar os seus luxos e comparar as suas riquezas. Todos os agricultores do domínio do Conde e suas famílias foram obrigados a servirem no Palácio durante o banquete.

Enquanto a festa decorria, o pequeno Manuel Albuquerque, fugira do trabalho duro da cozinha e escondeu-se no meio dos loendros à procura da sua amiga Madalena. Inesperadamente, um pequeno esquilo saltou-lhe à frente e fez-lhe uma graça, como se o cumprimentasse. Atraído pelo simpático animal, decidiu persegui-lo. O bicho penetrou pelo grande jardim que havia nas traseiras do palácio e seguiu em diante, através dum longo e estreito carreiro de arbustos ornamentados. Manuel perseguia velozmente o animal. Ao fim de percorrer aproximadamente cem metros, apercebera-se que estava perdido e que o esquilo desaparecera também. Tentou encontrar o caminho de regresso, mas fora infrutífero, pois o Palácio era rodeado por uma extensa área florestal. Manuel continuou a andar em círculos, até que “algo” o fez parar; parecera-lhe ouvir vozes. Escutara um breve sussurrar que provinha de uma cabana mal iluminada que havia lá ao fundo. O jovem acercou-se da pequena cabana, dando pequenos e comedidos passos para não fazer barulho. Ao abeirar-se de uma das janelas, viu o Conde Darkmoon.

«O que fazia ele ali?» pensou.

No interior da cabana, ardiam centenas de velas pretas, que descreviam um pentagrama satânico em redor do Conde, que se detinha todo nu. Ele estava ajoelhado e vociferava palavras estranhas, ora inclinando o corpo para o solo, ora levantado o dorso. Grunhia numa língua que Manuel não percebia.

“Non volo moriture,

Mors ultima ratio.

Cuique suum,

Ex dono,

Sustine et abstina,

Testis unos, Testis nullus”. (3)

Ansioso, esticou-se para conseguir ver melhor aquele cenário de horror, apercebendo-se que o Conde não estava sozinho lá dentro. Ouvira chorar. Era um choro abafado e aflitivo, mas ainda assim, era um choro.

Olhou para o canto da cabana e as veias gelaram-lhe com o que viu: a pequena Madalena, de 11 anos, estava completamente amarrada junto à parede. Darkmoon preparava-se para a esventrar com uma adaga “árabe” longa e pontiaguda. Manuel não conseguira conter-se com o choque e soltou um gemido. O assassino interrompeu o seu cruel movimento e os seus olhos loucos fixaram-se na janela. Apercebera-se que estava alguém lá fora. Vestiu uma capa sobre o seu corpo nu e saiu para o exterior.

-Escusas de fugir bastardo! Eu apanho-te! – Resmungou num tom ”sem-vida”, mas mortalmente ameaçador.

Manuel correu a toda a velocidade. Não sabia em que direcção fugia. O maldito Conde perseguia-o, mas não vinha a correr, vinha a cavalo. Ouvia o resfolgar do animal e um intenso galopada no seu encalço. A imagem da pequena Madalena não lhe saía da cabeça. «Estaria viva, ainda?» pensava cheio de pena e sem fôlego. Quando por fim, as suas pernas se escusaram a correr mais, caiu no chão, completamente esgotado e vencido pelo cansaço. Não conseguia controlar a sua respiração, nem dominar o medo. Voltou a levantar-se e tentou correr novamente.

Dera três passos e sentiu os seus pés a levantarem-se do chão. Um braço forte, tinha-o agarrado com bastante força. Olhou para cima e, ao ver o corpo enorme de um adulto, começou desesperadamente aos pontapés.

- Tem calma Manuel! Por onde tens andando? Já percorremos tudo à tua procura! – Bradou António, tentando acalmar o seu neto.

- Avô! – Gritou em desespero – Temos de fugir daqui, pai!

- O que se passa? Por onde tens andado, miúdo? Manuel contara ao avô, tudo a que assistira no meio do bosque. Avisou-os de que o medonho conde o perseguia para o matar, tal como tinha feito com as outras crianças.

António Albuquerque regressou para sua casa naquela noite. Ele sabia que o conde Darkmoon ia aparecer. Ele era o assassino, era um monstro. Matara oito crianças inocentes, incluindo a sua própria filha. Violava e matava-as no bosque que se estendia para lá da sua casa. Por isso, nunca fora apanhado. Agora, havia uma pessoa que podia identificar o assassino: o inocente Manuel.

VII - À espera do Monstro

Era véspera de Natal, e todas as famílias estavam reunidas, numa mesa farta com comida, bebida e doçarias. As crianças esperavam ansiosas, pela hora de abrir os presentes. Todas, excepto a família Albuquerque. Estes tinham uma contenda pela frente e não era uma contenda qualquer. Tinham de enfrentar o mais macabro dos assassinos, o homem mais poderoso da região: o Conde Darkmoon.

António Albuquerque naquela noite teve uma ideia fulgurante. Um fabuloso plano para escapar às garras sangrentas de Darkmoon.

Era madrugada e a neblina adensara-se. Manuel estava acordado no seu quarto e aguardava pela chegada daquele homem demoníaco, que vira dentro da cabana, com a pobre Madalena. Ele tremia de medo. Ouvira Dingo a ladrar. Não era um latido normal. Rosnava e babava-se. Dingo só ladrava daquela maneira, quando pressentia a presença de estranhos. Era ele. Tinha chegado. Manuel escutou os vagarosos e calculados passos do inimigo a aproximarem-se do seu quarto. Esperou mais um pouco. Levantou-se, abriu a janela e saltou para o telhado. Deste, saltou para o solo, cumprindo a rigor tudo o que fora combinado com o seu avô. Caíra mal e sentiu algo a estalar no seu tornozelo, mas não desistiu. Levantou-se e desatou a correr em direcção às vinhas.

Ouvira um Latido agudo e aflitivo, vindo do interior da casa e a seguir, tudo ficou silencioso novamente. Tinha acabado de matar o Dingo. Aquele monstro esventrara o seu melhor amigo. Manuel pressentia que estava a ser seguido. Ouvia as densas passadas de Darkmoon por entre as vinhas, mas quanto mais perto estavam, mais forças adquiria para fugir. Tropeçou e caiu. Tentou levantar-se, mas já era tarde demais – já estava cativo nas suas garras.

-Pensavas que podias fugir de mim, meu puro anjo? – Roncou ele de modo ameaçador. Manuel sentira-se desfalecer. Rezou por Deus. Tudo estava perdido.

-Larga o meu neto, Darkmoon! - Era a voz de Albuquerque. - Ou senão, encho-te de porrada! – Ordenou ele num tom intimidador, apontando a arma à cabeça do Conde.

-O quê?...Como é que sabiam que...Malditos sejam! – Praguejou o Conde assombroso. Darkmoon levantou os braços em modo de rendição, mas num gesto brusco, puxou da sua “Pedersoli”(4) e disparou contra Albuquerque, ferindo-o na perna esquerda.

Quando Darkmoon se preparava para disparar o segundo tiro, Manuel despejou-lhe uma garrafa com aguardente de medronho para cima da sua longa capa, deixando o Conde, meio aturdido. De imediato, Albuquerque, voltou a agarrar na sua arma e despejou-lhe dois tiros no peito. Por fim, ateou fogo a um archote e atirou-o para cima do inimigo, que o fez explodir em chamas.

Albuquerque ergueu o seu neto do chão e alojou-o no seu colo. Depois correu em direcção a casa. Darkmoon não conseguira apagar as chamas da sua roupa e em desespero, correu pelas vinhas a gritar nem um possesso. Não tinha a noção para onde ia. Estava completamente envolto em chamas. Ia morrer como merecia. Por fim, acercou-se do poço, que havia junto à casa e atirou-se lá para dentro. Já não suportava o calor das chamas no seu corpo. António Albuquerque espiava a trágica cena através da janela, mas não se limitou apenas a observar. Saiu para o exterior, e ordenou ao seu neto que apanhasse todas as pedras que encontrasse. Seguidamente, aproximaram-se do poço, e começaram a atirá-las ao conde Darkmoon.

-Por favor! Não me matem! Deixem-me viver... – Grunhia ele com a voz empastada, ecoando na noite. Indiferentes aos gritos de suplicia do Conde, avô e neto, não pararam de lhe arremessar pedras, até que estas cobrirem a cabeça do Demoníaco assassino.

«O monstro estava morto. Tinha sido feita justiça.»

Este foi o sentimento que dominou a consciência de António Albuquerque, depois de olhar para o poço, que agora sepultava um assassino medonho e macabro.

Ali jazia um monstro. Ali tinha de permanecer. Seria como uma jaula, uma prisão sob pedras. Desmancharia o muro do poço e plantava-lhe uma árvore em cima. Ninguém havia de saber o que se tinha passado na noite de Natal de 1808.

VIII - O Retorno

- Que experiência estonteante, meu Deus! - Silvou Ricardo, esfregando a cara.

- Já percebi, porque nunca gostei do Natal!

- A resposta para essa e outras questões está aqui, meu amigo! – Exclamou o velho sábio, retirando um pequeno livro do interior do seu sobretudo.

- O Que é? - – O diário de Darkmoon! – Proferiu ele, exibindo o livro como se fosse um troféu.

- O Diário de Darkmoon? Como o obteve? – Questionou, Ricardo indignado.

- Através de um padre corrupto. Não me perguntes como foi parar às mãos dele, mas julgo esse padre eram um seguidor secreto do Conde Darkmoon. – Disse calmamente.

Ricardo recebeu o diário das mãos ásperas do velho marujo. Abriu uma página ao acaso e começou a ler em voz alta:

- «Domingo, 23 de Abril de 1808

Hoje, soube através do Doutor Gordon, que vou morrer dentro de três meses. Tenho uma doença incurável, que nem ele sabe o que é. Depois da morte de Gloria, minha esposa, só me resta a minha querida Cinthya. Sinto-me perdido e desesperado.»

Voltou a desfolhar o diário e abriu-o outra página mais à frente, e continuou:

«Quinta-feira, 4 de Junho de 1808

Hoje fui à caça. Apeteceu-me desfrutar dos prazeres da natureza e de me exercitar um pouco. Contudo, fui vítima de uma experiência agonizante. Fui atacado por uma cobra que saltou do cimo de uma árvore e se enrolou na minha perna. Fiquei petrificado de medo. Se não tivesse sido a bravura do soldado Boamorte, teria morrido de pavor. A pior morte que algum dia poderia ter, seria no meio de cobras....»

-Bem, pelo menos, já ficámos a saber, o que fragiliza o nosso inimigo. – Ripostou Ricardo, continuando a desfolhar o diário, até que parou numa página e recomeçou a ler:

«Terça-feira, 1 de Março de 1808

Hoje conheci um curandeiro indiano, Mohammed – Al-Saduk, de seu nome. Este disse-me que eu não tinha doença nenhuma. Estava sim, possuído pelo Demónio; e para exorcizar o Demónio, teria de desflorar 9 virgens.

Que Deus me perdoe, mas eu não quero morrer»

- Darkmoon não se limitou a violá-las. Ele matou-as, para que elas não pudessem acusá-lo mais tarde. Manuel seria a ultima criança que Darkmoon iria desflorar. – Completou Acácio. - Ou seja, o outro eu...

-Bom, meu amigo! – Bradou o velho – Não há tempo a perder. Vamo-nos concentrar no que temos de fazer.

Após aquela experiência ambos sabiam que estavam perante uma nova ameaça. Afinal, Darkmoon não morrera completamente. Algo o tinha feito regressar das trevas. Podiam ter sido vários rituais de alguns dos seu seguidores, podia se o alinhamento dos planetas, pois decorria o ano de 1999 e decorria o mês de Novembro. Segundo as previsões de Nostradamus, o mal iria renascer sob várias formas, e uma delas seria Darkmoon, concerteza.

De novo juntos naquela mesma casa onde tudo acontecera há 191 atrás, avô e neto teriam de voltar a unir forças; tinham de voltar a edificar um plano tão perfeito, como aquele que tinham realizado há quase dois séculos. Não podiam perder tempo, Darkmoon vinha a caminho e estava disposto a derramar-lhes o sangue.

XIX - Uma Memória sombria

A noite já ia longa quando todos se aperceberam da comparência silenciosa de Darkmoon. Darkmoon envergava uma extensa capa de couro, que se alongava desde o arcaboiço, até aos pés. Era muito alto, devia ter um metro e noventa e cinco, ou mais; enfiava um bizarro chapéu de feltro púrpura na cabeça, cuja sombra lhe escondia o rosto misterioso. Darkmoon sabia onde estavam os seus adversários, por isso estava ali.

Começou por regar a casa com álcool. Deitou uma chama para o solo da casa velha e deixou as chamas treparem pelas paredes, até ao tecto. Esperou. Eles haviam de aparecer a qualquer momento, asfixiados pelo fumo e pelo calor.

A nobre casa de Sesim, em poucos minutos, ficara completamente consumida pelas chamas, mas nem sinal dos opositores de Darkmoon. Confuso, apercebeu-se de que, aqueles que perseguia, já não estavam dentro da casa. Tinham fugido. A sua posição fora denunciada quando pegou fogo à decrépita construção. Nesse momento, ouviu uma tábua a partir-se. Um corvo adejou, vindo do interior do celeiro abandonado que existia a cinquenta metros da casa velha - Eram eles!

Darkmoon dirigiu-se à velha arrecadação com a sua Pedersoli em punho. Abriu a porta central, devagar. O interior do depósito estava todo iluminado com fachos, meticulosamente amarrados às paredes. Ao fundo, vastos montes de feno, amontoavam-se, entre ferramentas e alfaias rurais. Subitamente, do meio dos aglomerados de pasto, surgiu o pequeno Ricardo. Olhou para Darkmoon e viu-lhe o rosto pela primeira vez: «Era hediondo» pensou. Uns grandes olhos verdes e desumanos observavam-no como se o quisessem dominar.

Ricardo tremia de medo, enquanto continuava a fitar o seu opositor:

-Estou aqui, Conde Darkmoon! Sou eu quem tu procuras. Deixa o meu avô em paz! - Balbuciou com a voz a tremer, mas com os olhos firmes. Mas a criatura nada dizia, continuava a examinar o pequeno, arfando como um animal, ostentando umas largas narinas, que tremiam como as de um lobo. Ainda lhe conhecia o cheiro. Ricardo podia senti-las a farejar ansiosamente.

Darkmoon apontou-lhe a arma, como se estivesse a tentar imobilizá-lo. Ricardo conseguira ver-lhe a mão. Na verdade não era uma mão, era uma garra. Tinha uns dedos ossudos e volumosos. Tirou o chapéu, deixando cair a sua longa e farta cabeleira sobre os ombros. Foi quando Ricardo viu que a face de Darkmoon era coberta de queimaduras. Era uma face hedionda e deformada.

Darkmoon, não atacou Ricardo. Percebeu que lhe tinham armado uma cilada. Desta vez não seria surpreendido. Tal como os seus opositores, Darkmoon, adoptara a sua própria estratégia para a vingança.

-Sabes Albuquerque... – Grunhiu – Eu não sou uma alucinação. Eu sou o dono da tua mente e da tua vida. Eu sou, o dono do teu destino.

- És um ser sem alma, Darkmoon! – Interpôs Acácio.

-E a tua mulher, a tua querida Filomena? - Gozou o Conde – Fui eu que a matei naquela noite. Ah, como ela grunhiu, suplicando para que não a matasse...

Nesse momento, Acácio escapou-se do local onde estava escondido e correu como um louco em direcção a Darkmoon. Puxou da sua caçadeira e apontou para ele. Tranquilamente, Darkmoon desarmou-o e apenas com o dedo polegar e o indicador, elevou o velho Acácio em peso no ar, apertando-lhe a traqueia. Acácio parecia uma marioneta a tremelejar ao vento. -Eu sou a tua vida, velho, mas também sou a tua morte! – Rosnou o ser, enquanto lhe prensava o pescoço. Ricardo abdicou do plano que estava delineado e tentou ajudar o velho Acácio, que já estava roxo e à beira da asfixia, pendurado entre os dedos de Darkmoon.

Ricardo deteve-se, quando percebeu, que mesmo em dificuldade, o velho Acácio lhe fizera um gesto com a mão para esperar. Por fim, Darkmoon soltou o velho Acácio, deixando o no chão, meio aniquilado.

O Conde voltou a contemplar o Barracão. Procurava por Ricardo, que exibiu a cabeça por trás de um monte de feno.

-Estou aqui, palhaço! – Berrou o miúdo, chamando-lhe a atenção.

O conde deu dois passos em frente e inesperadamente, sentiu o chão fugir-lhe dos pés. Uma grande fossa abriu-se sob ele, engolindo-o lá para dentro. Tratava-se de fosso que fora escavado de propósito para ele. Caíra em cima de algo mole, que amortecera a sua queda. Olhou em seu redor e viu-se envolto por dezenas de cobras de todos os tamanhos e de todas as cores. Viscosas e entrelaçadas, amontoavam-se, umas em cima das outras, movendo-se em direcções alternadas. Tentou disparar sobre as cobras, mas apercebera-se de que a sua estimada Pedersoli estava perdida no meio daquele amontoado de serpentes. Darkmoon seria devorado num ápice. Curioso, Ricardo acercara-se do fosso. Queria ter a certeza que o plano tinha dado certo. Queria assistir de perto à morte do monstro que o atormentara através de pesadelos, toda a vida. Envolto no meio das cobras e já em sufoco, esticou bruscamente o braço e alcançou a bainha das calças do garoto, levando-o a cair também para dentro do fosso repleto de cobras – Darkmoon tinha-o apanhado.

-Socorro! Acácio, tire-me daqui! Tire-me daqui depressa! – Gritou ele a chorar. Gesticulava, desesperadamente. Acácio agarrou num tronco comprido e correu em direcção ao fosso. Deu a extremidade do tronco a Ricardo, que o segurou com toda a força, até que foi arrancado do meio das garras do inimigo, que já se preparava para o estrangular.

Acácio Trigueiro retirou o diário maldito do seu bolso e bradou:

-Estão aqui as tuas memórias, Conde! Eis o que resta de ti: um diário! Não passas de uma memória retida no tempo! Exibiu o diário no alto, para que Darkmoon o visse. De seguida pegou fogo ao livro amaldiçoado do Conde e atirou-o para cima dele.

Nesse momento, as labaredas do livro apoderaram-se do traje do Conde e este fora invadido pelas chamas.

-AAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHH! -Grunhia desesperadamente, enquanto as cobras lhe invadiam o corpo para fugirem do fogo.

Ricardo fora imediatamente aconchegado por Acácio.

Ambos permaneceram quedos a observar a destruição do monstro no fundo do fosso, teimando em confirmar que o plano do velho Acácio resultara na sua plenitude.

Acácio preparara aquela emboscada a Darkmoon, há alguns anos atrás. Fora ele quem atraíra as cobras para aquele local. Posteriormente ergueu o barracão por cima do fosso e recheou-o com feno para atrair insectos e roedores para servirem de alimentação às cobras.

-Acho que já não há mais nada para fazer aqui! – Disse Acácio

-Sim! – Anuiu Ricardo.

Afastaram-se do barracão que já ardia também. Ricardo ainda olhou para trás. Queria ter a certeza, de que aquele monstro demoníaco tinha ficado, mesmo prostrado no meio das cobras. Não havia vida. Apenas chamas a destruir as madeiras e o feno que restava no celeiro. Sob as labaredas estaria Darkmoon. Ardia no inferno.

Epílogo

Darkmoon fora imaginosamente derrotado. Fora um inimigo brutal, muito mais do que uma alucinação, um pesadelo ou uma ameaça espectral. Uma sombra perversa que acompanhou aquelas duas “almas” durante cento e noventa anos. Foi o responsável pelas suas derrotas, mas também, pelos seus êxitos. Afinal, ele manteve-os vivos para que as suas vidas, apenas a “ele” pertencessem. Só Assim poderia pôr fim à sua longa e espinhosa caminhada: vingar a sua morte e retornar à vida. Darkmoon estava finalmente morto! Ricardo e Acácio Trigueiro ficaram para sempre unidos pelo condão mágico da vida: A amizade.

VISITANTE INDESEJÁVEL


Yara estava realmente apertada para ir ao banheiro. Estacionou seu carro na garagem, abriu a porta e saiu praguejando contra a vontade insuportável de urinar, nem se importando em fechar a porta ou desligar o rádio que guinchava aos acordes alucinados da guitarra de Jimi Hendrix.

Ela e o marido estavam passando alguns dias em sua casa no lago, que fica em uma região praticamente desabitada no interior do estado. Nessa época do ano não havia movimento nenhum por perto, e ficaria assim por alguns meses, até que chegasse a época das férias escolares, e era exatamente isso o que eles estavam procurando quando decidiram passar uns dias na casa do lago. Eles queriam uma espécie de segunda lua-de-mel.

Ela acabara de voltar do supermercado e achava que se demorasse mais um segundo para ir ao banheiro não agüentaria e acabaria urinando nas calças. A porta da sua casa parecia estar a anos luz de distância e ela correu desajeitada, apertando as pernas.

Se não estivesse tão desesperada para ir ao banheiro, talvez tivesse notado o detalhe um pouco inquietante: a porta da entrada não estava trancada. Ao invés de reparar nisso, ela quase derrubou a porta ao entrar, atravessou o hall de entrada em direção ao banheiro do andar de baixo, que ficava depois da cozinha, nos fundos da casa.

Parou de repente porquê escutou um som estranho vindo da cozinha. Estava parada no corredor, entre a sala de estar e a própria cozinha, a respiração ofegante, a vontade de urinar cada vez mais insuportável. Sua calcinha já estava úmida de gotas de urina que escaparam do seu controle, mas o medo a manteve paralisada e atenta ao som que ouvia.

Era baixo e aterrorizante, mas era um som que ela conhecia muito bem.

Era o som de faca cortando carne. Ou melhor de faca "destrinchando" carne. Conhecia esse som muito bem desde os seus 18 anos, porque seu marido Tony era o açougueiro do bairro onde moravam.

Mas não podia ser ele na cozinha. Há poucas horas ele tinha saído para pescar no lago, e quando ele saia para pescar, levando sua embalagem com seis cervejas dentro de um isopor, ele só voltava ao anoitecer para o jantar.

Avançou mais um pouco, o mais silenciosamente que conseguiu, apertando as pernas para conter sua vontade de ir ao banheiro, e tentou ver do lugar onde se encontrava se conseguia avistar quem estava na cozinha. Encostada no batente da porta, ela se encolheu e conseguiu ver sem ser vista: era um homem, completamente estranho. Ele estava de costas para a porta da cozinha, debruçado sobre a mesa, na frente do que a princípio parecia ser um boi inteiro nadando em sangue. As paredes, janelas e todos os eletrodomésticos e demais utensílio da cozinha estavam encharcados de sangue.

O homem se inclinou e enxugou a testa com a manga do paletó, um gesto peculiar de quem esta suando e cansado do trabalho duro.

O medo que até então estava só esperando um empurrãozinho para começar a dar sinal de vida se manifestou, porque agora que ele se inclinou ela pôde ver que, afinal de contas aquilo na mesa sendo retalhado não era um boi. Não, não era boi coisa nenhuma e sim uma pessoa, e estava usando botas de cowboy, muito parecidas com o par que seu marido tinha, aquele que ela lhe deu de presente no Natal passado e que ele sempre usava quando ia pescar no lago.

Sentiu um líquido quente escorrer pelas pernas e um alívio repentino na bexiga, e notou sem muito interesse que finalmente urinara nas calças.

Mas isso não era o mais importante agora. O importante mesmo era que esse camarada que estava ali na sua cozinha, usando a faca Gynsu de seu marido cortar carne, fazendo seja lá o que for com uma pessoa, e por favor meu Deus, que essa pessoa não seja o Tony, não notasse que ela estava ali, pelo menos até que ela chegasse ao seu carro na garagem e...

Mas no momento em que ela pensou em se virar cautelosamente e sair, como se o homem tivesse conseguido ler seus pensamentos, uma voz terrível, rouca e cadavérica, como se saída da boca de um defunto, falou calmamente, sem que o homem sequer se virasse ou interrompesse o que estava fazendo:

- Sei que você está aí. Ouvi o barulho do carro chegando e além disso você esqueceu de desligar o rádio. Está ouvindo? Gosto dessa música.

Lá fora, o rádio de seu carro continuava tocando música muito alta, só que as guitarras de Jimmy Handrix agora foram substituídas pelo som dos The Doors tocando People are Strange.

Ele começou a cantarolar a música e se virar bem devagar...

Yara gritou quando viu seu rosto. Qualquer um gritaria.

Ele era totalmente deformado, o rosto parecia mais uma máscara do dia das Bruxas, com dentes podres e lábios arreganhados em um sorriso hediondo.

Mas o que a fez gritar não foi a sua deformidade, mas sim o que viu em seus olhos: loucura e maldade. Seus olhos eram cruéis, e irradiavam um ódio contido por tudo que fosse vivo. Sua boca estava suja de sangue e ela notou com crescente horror que ele havia lambido o sangue que escorria do corpo.

Ele veio em sua direção e ela ainda tentou correr, mas ele agarrou-a pelos cabelos e puxou-a pra si, dando uma gargalhada terrível.

Ela tentou fugir golpeando e chutando a esmo, mas ele era muito forte, parecia que tinha uma força sobrenatural. Tentou gritar, mas quando abriu a boca levou uma pancada na cabeça e desmaiou.

E mesmo que ela tivesse conseguido gritar, quem a ouviria?

**************

Quando acordou, horas depois, estava amarrada na cadeira de sua mesa de jantar, totalmente imobilizada e amordaçada. Sua cabeça não podia se movimentar para nenhum lado, apenas seus olhos se mexiam e olhavam ao redor, apavorados.

E, coisa estranha, seus cabelos estavam molhados e ela sentia um desconforto na parte superior da cabeça, bem no centro.

Tentou soltar as mãos. Impossível.

Estava em uma posição bastante desconfortável e sem nenhuma chance de se mexer ou se soltar.

Pelo pouco que podia ver, parecia que estava sozinha. Mas depois notou que não, não estava sozinha. Sim, finalmente pode ter certeza de que era seu marido quem estava na mesa. E agora o que ela via na sua frente era o que restou dele, arrumado cuidadosamente em sua poltrona preferida.

O homem, ou seja lá o que era aquilo, retalhou seu marido inteiro, e depois tentou colocar tudo no lugar novamente, só que de uma maneira bem grotesca. A barriga estava toda aberta, expondo os órgãos internos, mas ela pode notar que faltava boa parte deles. Os braços e parte das pernas foram arrancados e pregados na parede. As orelhas e os olhos também foram arrancados e jaziam espalhados pelo chão.

Ele colocou uma peruca loura na cabeça do cadáver, e vestiu uma saia que ela não reconheceu como sua. Passou batom nos lábios, imitando um sorriso de palhaço e nas suas mãos tinha um cartaz escrito: "Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura, o pior pecado é a Luxúria".

O desconforto na sua cabeça foi aos poucos ficando mais intenso. Depois de muito tempo ela percebeu que eram gotas que caiam na sua cabeça. Talvez algum cano tivesse estourado bem em cima dela. Depois ela notou que na parte da cabeça em que caiam os pingos não havia cabelos. Isso era certeza, porque ela podia sentir as gotas caindo diretamente sobre seu couro cabeludo e incomodando muito.

Horas se passaram. Agora as gotas que caiam a todo o momento na sua cabeça pareciam ser feitas de chumbo.

Tentando freneticamente se livrar das cordas, ela cortou os pulsos e se machucou inutilmente, sem conseguir se mover sequer um milímetro.

A dor na cabeça estava ficando insuportável. Como ela não podia mexer a cabeça, as gotas caiam continuamente e num ritmo bem calmo, sempre e sempre no mesmo lugar...

Ping, ping, ping...

" Casal encontrado assassinado em casa.

O açougueiro Antônio Marcos Ravel e sua esposa Yara Felix Ravel foram encontrados mortos depois de setenta e quatro dias, na sala de estar de sua casa de veraneio.

Os corpos foram descobertos pelo vizinho, que veio passar as férias com a família e notando o cheiro que saía da casa, resolveu chamar a polícia.

O Sr. Ravel foi encontrado na sala de estar, todo mutilado e retalhado, usando uma peruca e uma saia, maquiado de forma grotesca. Em seu corpo não restava uma gota de sangue.

Sua esposa estava amarrada na cadeira da mesa de jantar, imobilizada, o assassino perfurou um cano bem acima da cabeça da vítima, fazendo com que gotas de água que caiam continuamente no mesmo local em sua cabeça, perfurassem seu crânio, levando a mesma a morte após vários dias de sofrimento e agonia.

Ambos os corpos estavam em avançado estado de decomposição.

O casal não tinha inimigos e eram pessoas honestas e trabalhadoras.

Nada foi roubado e a polícia não tem pistas do assassino e nem do motivo de um crime tão brutal."

DOENÇA MALDITA


Terça-feira.

Minha desgraça começou nesse dia, quando voltei da selva amazônica. Eu havia ido ao Pico da Neblina (mais um que escalava essa montanha imponente) e passei, depois, quatro dias na região de Maturacá, a alguns quilômetros de uma cidade chamada de São Gabriel da Cachoeira, no extremo norte do país.

Adorei estar naquela região inóspita, selvagem e lotada de animais exóticos.

Agora, eu estava em casa, onde moro sozinho, pronto para um merecido descanso, após quinze dias de aventura.

Oh, eu dormia!

No entanto...

Pensei que estava sonhando, ao sentir que alguma coisa passeava por cima do meu rosto. Pés diminutos, ásperos e incômodos. Um corpo sobre o meu!

Que nojo!

Não acordei. Tentei afastar aquela entidade com a mão direita.

Talvez eu tenha tocado em algo!

O certo é que os pés ásperos sumiram.

***

Quarta-feira.

Um dia cheio, em que dei entrevistas, malhei e voltei ao meu trabalho como publicitário.

Depois, eu dormia no meu quarto suntuoso.

E aí...

Novamente alguma coisa em meu rosto.

Os malditos e chatos pés! Seriam mesmo pés? Ou não?

Mas eu não conseguia acordar! Não conseguia abrir os olhos!

Com a mão direita afastei a criatura.

Voltei a dormir com tranqüilidade.

***

Quinta-feira.

Um dia comum. Trabalhei, malhei, fui ao shopping e combinei de ir, com amigos, a um clube, sábado, para me divertir um pouco.

À noite, pensei naqueles malditos pés.

Antes de deitar, eu havia efetuado uma busca pelo quarto. Não sei o que esperava encontrar. Talvez um bicho esquisito e mongolóide? Com certeza não.

Nada encontrei e pude continuar com meu sono.

Duas horas depois, os pés diminutos apareceram.

Horríveis! Indecentes! Nauseabundos!

Passeavam maliciosamente por sobre meu rosto.

Tentei acordar... sem sucesso.

O que estava acontecendo?

Mais uma vez minha mão direita agiu, livrando-me da criatura.

Seria um animal?

***

Sexta-feira.

Fui picado no rosto!

Doeu, mas não pude acordar.

Os pés diminutos, um ferrão, o ardor antipático.

Minha mão direita afastou a criatura.

Dormi mal.

Tive pesadelos com baratas, besouros, ratos, escorpiões, centopéias e minhocas. Todos em cima do meu rosto, me devorando vivo! Eu gritava de dor!

Acordei, sobressaltado, pálido e em pânico.

Por quê? O estaria acontecendo comigo?

Terei que fazer alguma coisa.

***

Sábado.

Adoeci, logo pela manhã, antes de iniciar minha corrida.

Começou com uma febre, que foi aumentando... aumentando...

Eu tossia e cheguei a vomitar duas vezes.

Uma dor de cabeça enjoada!

Uma ferida no rosto! Uma horripilante ferida surgiu no meu rosto!

Desesperado, fraco e sem forças, fui parar no hospital.

A ferida tinha um centímetro de diâmetro.

E estava crescendo gradativamente.

***

Domingo.

Alguns amigos e colegas de trabalho me visitaram. Deram-me apoio e deixaram flores e livros. Gostei das visitas.

Febre... dor de cabeça... vômitos....

A ferida! A ferida! Dois centímetros! Ardia muito!

Estou delirando, preso na porra desse hospital!

Meu Deus!

***

Segunda-feira.

Ainda doente, tentei dormir.

A febre diminuiu, mas a ferida estava lá, cada vez maior.

Ferida asquerosa, com fluidos de pus...Ardia pra cacete! Merda!

Os médicos aplicavam injeções. Eu tomava comprimidos amarelos. Um líquido estranho (seria iodo? - não perguntei) foi passado sobre a ferida. Não contei pra eles sobre a criatura que passeava sobre meu rosto. Eles não iriam acreditar mesmo.

Os pés diminutos! No meu rosto!

Mesmo sem abrir os olhos, meti a mão e o peguei.

Havia alguma coisa na minha mão. Fazia movimentos frenéticos, como se quisesse fugir. Com ódio, esmaguei-a, ao fechar a mão.

- Morra, maldita! - lembro que gritei.

Abri a mão, em seguida, e a criatura caiu no chão, em fragmentos esbagaçados.

O que seria?

***

Terça-feira.

Dois amigos vieram me visitar, durante o dia, e ficaram horrorizados com meu estado. Mesmo assim, me deram força para lutar contra esse mal misterioso.

Aproveitei para fazer um pedido inusitado: caderno e caneta. Eles estranharam, mas prometeram trazer.

Agradeci.

Depois, à noite, mais sofrimento.

Febre! Minha cabeça latejava! Estou fraco... fraco...

Havia um curativo sobre meu rosto, em cima da ferida.

Tentei mostrar a criatura para os médicos.

Mas... não havia nada em lugar algum daquele quarto! Nada, nada. Merda! Como é possível? Como, meu Deus?

Teria eu imaginado aquilo?

Estaria ficando louco?!?

Minha respiração! Como está difícil respirar, falar, viver!

Não dormi, embora fechasse os olhos.

***

Quarta-feira.

Estou morrendo...

Tenho diarréia. Já vomitei sangue. Emagreci.

Meus amigos trouxeram o caderno e a caneta e agora estou escrevendo minhas angústias. Estou relatando tudo, para que sirva de alerta, caso novos casos ocorram. Algo de macabro está acontecendo na selva amazônica, principalmente na região de Maturacá. Aquela área deve ser investigada.

Escrevo... com dificuldades...

Não consegui esquecer a criatura se mexendo na minha mão, a forma como a matei. Mas... para onde foi? Não teria morrido?

Os médicos estão fazendo de tudo para salvar minha vida. De tudo!

Fui transferido para outro hospital, especializado em doenças tropicais.

Um deles disse que minha doença tem algo a ver com os dias em que passei na selva amazônica. Porém, não puderam diagnosticar precisamente de que mal fui vitimado.

Exames (de sangue, urina, fezes, etc) estão sendo realizados.

***

Quinta-feira.

Dor de cabeça!

Alguns amigos e colegas de trabalho tentaram me visitar, mas foram proibidos de entrar no meu quarto. Eu estava incomunicável.

Tentei lembrar de ter sido picado por algum inseto, enquanto estava na selva, mas nada me veio à memória.

A não ser aquele índio Yanomami, de quarenta e poucos anos, que havia contraído uma espécie rara e mortífera de malária, numa das aldeias de Maturacá.

O índio estava deitado na rede. Pálido, magro e soltava gritos de agonia.

Acompanhei o sofrimento dele por quatro dias, até vê-lo morrer.

Uma morte pavorosa!

Ele tinha visões de insetos, de monstros e apontava para o canto da casa.

Gritava muito, no seu dialeto. Os familiares, em desespero, lhe davam chás.

O médico de nossa equipe não soube o que fazer, pois não tinha remédio apropriado para aquela doença estranha.

O índio morreu magro, em convulsões terríveis!

Custei para tirar aquela imagem da cabeça.

E soube que outras mortes aconteceram, nos últimos meses. Seria um surto?

Nos perguntamos se aquela doença seria mesmo malária.

E agora... eu me pergunto: estarei desenvolvendo os mesmos sintomas? Será?

Tenho pesadelos!

Nessa noite, sonhei que uma horrenda barata gigante e negra me picava.

Aqueles olhos! Aqueles olhos sinistros!

Havia mosquitos por toda a parte. Mosquitos nojentos! Todos me devoravam!

Gritei de dor e medo.

***

Sexta-feira.

Atualizei o caderno. Os médicos o viram, mas não ousaram ler o que ali estava escrito. Ótimo.

Passo os dias sofrendo e escrevendo.

Minha ferida estava enorme! Seis centímetros de diâmetro! Meu Deus! Uma ferida horrível! O pus era visível, quando os médicos trocaram o curativo.

Minha respiração! Febre! Dores pelo corpo! Diarréia!

Eu estava pesando cinqüenta quilos. Magro! Excessivamente magro! Rosto cadavérico, com sulcos profundos nos olhos! Eu estava me transformando numa espécie de zumbi. Entrei em pânico.

O quarto estava infestado de insetos!

Vários deles andavam por sobre meu rosto.

Besouros... moscas... mosquitos... baratas! Horripilantes... picando... destruindo...

Nããããoooooo!!!!

Gritei.

***

Sábado.

Estou isolado dos demais pacientes. Os médicos ainda não descobriram que doença eu tenho. Eles se aproximam com máscaras, luvas e roupas especiais.

Minhas dores estão insuportáveis.

Eu passo os dias chorando... escrevendo... agüentando as dores...

Lembrei de minha mãe, já falecida. Sinto falta dela, que poderia estar aqui comigo, me dando forças. Onde estás, mamãe? Não tenho irmãos... não tenho esposa.... filhos... não tenho ninguém... uma ignóbil depressão sufoca meu peito...

Só. Absolutamente só!

Estou magro, parecendo um monstro...

A ferida já toma quase a metade do meu rosto...

Apenas a morfina ameniza meu sofrimento...

***

Domingo.

Não consigo respirar! Meu Deus! Estou morrendo!

As dores! Não consigo suportá-las!

Lembrei do índio agonizando. Pálido! Magro! Com visões! Os mesmos sintomas... doença rara... por quê?

Por que eu?

Detesto o cheiro do quarto desse hospital! Essas paredes... são cruéis...

A escuridão me cerca! Trevas! Caos! Desespero!

Não... consigo...

E continuo escrevendo... escrevendo... ou tentando... mesmo sem forças... até que...

Amo você, mamãe! Meu Deus! Meu Deus!

Não! Não tenho mais forças para escrever.

Vou deixar o caderno em cima da mesa.

***

Segunda-feira.

A enfermeira ouviu os gritos e chamou os médicos.

Ela e dois médicos entraram no quarto, às pressas.

E o que viram...

***

Nos jornais, a manchete:

“Publicitário e alpinista morre em São Paulo”

“Lucas Kriter Malcom, 32 anos, solteiro, morreu ontem, vitimado por uma doença misteriosa, uma mistura de malária (daí os vômitos) e leshimaniose (por causa da ferida no rosto). Os médicos acreditam que tenha sido picado por vários tipos de insetos, durante sua permanência na selva amazônica, onde escalou recentemente o Pico da Neblina. Os especialistas em doença tropicais farão mais exames no corpo, para definir a doença exata que o acometeu. E não podemos deixar de registrar um fato estranho, que ocorreu poucos minutos antes de sua morte. Os médicos entraram no quarto, após ouvirem gritos, e se depararam com uma cena bizarra. Lucas, trêmulo, os olhos arregalados, demonstrando terror extremo, sentado na cama, apontava para um dos cantos do quarto e gritava: “Ali! Ali! A barata! A barata que me picou! Ali! Ali!”. Logo em seguida entrou em convulsão e morreu. Porém, não havia nenhuma barata no quarto. Os médicos acreditam que ele entrou em delírio, devido ao seu estado físico. O morto, que era órfão, não deixou filhos. Na verdade, deixou um caderno, onde relatou os seus momentos de sofrimento. Com base nas informações contidas no caderno, uma equipe médica irá percorrer a região de Maturacá, para verificar se há mesmo algo de errado acontecendo ali. Para finalizar, ficamos com a pergunta: que segredos se escondem na selva amazônica? Teria o Lucas morrido de uma doença nova, tão fatal quanto o Ebola? Esperamos

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